sábado, 30 de outubro de 2010

Minicontos ainda sem títulos.

I

Meus braços estão retorcidos de tanto limpar o chão ao esperar uma visita sua.
Uma visita em que você fique. E encoste o carro na sarjeta e deixe o cachorro correr pelo jardim.
E divida toda a pizza que eu comprei de madrugada, só porque você escolheu que fosse assim, que a história fosse assim.
E eu também escolhi. E toda vez que você parte, as paredes e o teto choram por mim. Mas não tem problema, porque eu escolhi que fosse assim.
Eu te quero na mesa do jantar, mas se quiser sair, tudo bem. A porta é a serventia da casa, é o que dizem.
Pode ir, eu abro a porta para você. Eu já te dei a chave e tudo volta quando quiser.
Não há segredos no cadeado, queria pensar que não há segredos em nada.
E mesmo que eu tenha meus próprios segredos, os únicos segredos que tenho guardado são os seus.


II

Ao descer do ônibus, pensou que ainda havia como voltar pra casa. Encostou o bilhete único na catraca e percebeu que não tinha crédito.
Pensou em contar as moedas que tinha no bolso traseiro, mas certamente, não conseguiria pagar um bilhete pra voltar.
E olha que hoje já havia pedido dinheiro para alguém. Moço, você tem um carro? Para onde você vai? Tu pode me dar um trocado pra eu pegar o busão?.
Um trocado aqui, um trocado ali, um resto de comida aqui, água para ajudar a engolir, essas coisas.
A gente vai engolindo mesmo, fazer o que.
Acende um cigarro. A única coisa que poderia fazer no momento, era acender um cigarro.
Fumante apenas em dias pobres. Era um dia pobre este. Suas unhas estão descascadas e suas calças provavelmente já respiraram dias melhores.
Pensou em mostrar os peitos em troca de dinheiro para voltar. Mas já havia mostrado os peitos bastante naquele dia. Estava cansada.
Uma hora algum senhor bonzinho aparece e me dá uma carona - foi o que pensou.
E voltou a fumar distraidamente, porque era a única opção que lhe sobrou, aqueles cigarros amassados dignos de conquistar rapazes aleatórios na rua.
Uh, a juventude. Ela sempre conseguia pensar rapidamente em todas as possibilidades.
Mas naquele dia, ela respondeu que estava tudo bem.
Porque acostumou-se a fazer isso.


III

Não era um presente, ora essa, porque presentes são bonitos. Era apenas uma doação com um bilhete escrito com sangue, feito para doer.
Mas recebeu de bom grado mesmo assim. Gostava de receber presentes, mesmo os feios. Alguns presentes tinham carga, fato.
Pensou que poderia ser um presente bomba, abriu com cuidado afastando-o do rosto. De fato explodiu.
Não importa. Disse para o carteiro que estava tudo bem. Só para que ele pudesse ir pra casa sem dor na consciência.
Já era um fardo bem pesado em si, ter os cachorros mordendo suas pernas.
Com a cara toda queimada, como num desenho do Coyote e do Papaléguas, largou o presente num canto do quarto e nunca mais mexeu.
Mas sempre lembrava do presente. Em todos os momentos.
Depois de um tempo, resolveu dar um fim naquilo tudo.
Queimou o bilhete escrito a sangue, numa panela com fogo.
Respirou o cheiro de queimado e pensou que o ar e a água não pontuam o fim, mas o fogo sim.
Fechou os olhos e escutou a música do Bach que vinha de algum outro cômodo da casa. Sua música favorita, maravilhosa coincidência.
Tudo isso durante a hora do almoço, com platéia e tudo.
Pensou em chorar. Mas fez uma cara de indiferença.
Ainda assim aquele momento não deixou de ser poético.

1, 2, 3, salve o meu mundo.

Eu só precisava de alguém pra brincar de esconde-esconde. Alguém que soubesse um bom lugar para esconder.
Alguém que grudasse o corpo junto ao meu entre duas paredes e fizesse Shiiu, pra ninguém escutar.
Alguém que dissesse "não tem ninguém olhando, pode ir"
pra eu sair correndo e gritar,
batendo a mão na parede: 1 2 3 Mayra.
Talvez eu não conseguisse chegar a tempo.
Mas depois ele sairia correndo, depois de todo mundo,
bateria a mão na parede
e gritaria
1 2 3 salvo o mundo

E o jogo começaria de novo
escondidos novamente
e de novo
de novo
de novo

Até que não precisemos mais nos esconder.

Pratododia

Eu fiquei com o resto.
Peguei tudo o que sobrou naquele prato, guardei num “tapauér” e coloquei na geladeira numa esperança de que o frio fizesse sumir todos aqueles micróbios. Depois de um tempo, abri a geladeira e despejei o resto no prato.
Eu não sabia que estavam distribuindo resto de comida por aí. De qualquer forma, eu cheguei tarde. Tarde para ganhar o prato de comida que eu havia escolhido. Cheguei algum tempo depois, sabe?
E por isso sobrou-me apenas o resto. O resto arrumado no prato, de um jeito bem diferente da qual eu gosto de comer.
Mas não importa. Eu misturo de novo com a colher até perder a forma e como mesmo assim, sentadinha naquele degrau.
Meu estômago sente-se preenchido.
Mesmo que eu esteja comendo o que sobrou.

Eu dialogo com maiores abandonados.

Eu te dei aquele copo com água. E você pediu para entrar e eu deixei.
E você ta aqui, aqui dentro. Então por que você simplesmente, não fica a vontade e senta no sofá e dá risada com um dos meus filmes bobos?
Eu divido os meus livros com você, eu divido as minhas jujubas que eu guardo no copinho, eu divido até o meu chocolate branco com cookies.
Eu divido tudo.
Eu tiro as minhas coisas da lareira e acendo o fogo e tudo pode ficar quente e doce numa noite de frio.
Eu nunca acendo a lareira. Mas dessa vez posso acender, mas só porque é você, acredite.
Eu nem sei porque construí uma casa com lareira, nunca tem ninguém pra ver o fogo queimando.
O fogo sempre queima tudo que passou. Mas sabe, eu sempre fui água, também. Tudo fica por aqui mesmo.
Porque água é cachoeira e toda água tem que descer do topo até cair no chão e misturar com outras águas e correr, correr e passar.
Minhas caixas com lembranças e minhas gazes sujas de tanto limpar feridas ficam por aqui o tempo todo, mas eu encosto tudo pelos cantos da casa.
Fica um espaço grande no meio do quarto, assim. Assim porque sempre tem que ter espaço pro novo. E eu não tenho medo do novo, mesmo que o novo seja desconhecido.
Eu tenho medo é de tudo que eu conheço e já vi.
Larga essa faca, cara. Tu não quer fazer isso, eu sei. Vai doer mais em você do que em mim, eu sei.
A porta ta aberta, tu pode ir embora e eu não conto pra ninguém, não te denuncio pra polícia.
Larga essa faca, eu aposto que tu não quer rasgar o meu coração.

Dia das bruxas

Travessuras e (ou) gostosuras é o meu lema. Não ligo de bater em sua porta e pedir um doce.
Porque sei que é fase, normal, uma hora passa, porque tudo passa.
Uma hora eu canso de bater em sua porta e pedir um sorriso, fazer uma gracinha com uma fantasia escura só pra ganhar um doce.
Numas de adoçar a boca, numas de sentir o doce sabor do doce que tu coloca em minhas mãos.
Encha meu pote com doces, alegrias e sorrisos.
E eu esqueço que eu consigo ser uma garotinha malvada se eu quiser.

Rodinhas para ajudar

Guardei em minhas malas cada lembrança, cada sorriso, cada palavra doce.
Todas as coisas que outrora foram jogadas pelo chão.
Tudo que já havia sumido de você, antes que eu decidisse partir.
Tinha o dinheiro para o pão com o ovo mais o bilhete do trem.
Me perdi.
Vinte anos depois eu tentei me achar.
E lá estava eu.
Tudo de mim.
Toda a minha vida guardada dentro de uma mala, durante esse tempo todo.

Ensaio para cicatrizes

Eu segurei em sua mão e disse:

- Vem! Vem, não vai doer nada, eu prometo!

Sei que a cada nova cicatriz, fico mais resistente, porque cria uma casquinha que protege. Torna-se difícil machucar mais de uma vez no mesmo lugar.
Mas ainda assim, me sinto fraca. Fraca porque eu não consigo esquecer. Eu tenho medo de cair de novo.
Com o tempo a gente esquece os machucados e vai perdendo o medo de se machucar de novo. Quando não tem casquinha pra arrancar, é que ainda não deu o tempo pra esquecer.
A gente lembra da sensação de dor. A gente toma um choque e fica com medo de subir o interruptor com a mão molhada de novo. Porque a gente lembra daquela dor, ocasionada pela troca de elétrons.
Mas depois a gente esquece e mexe com eletricidade de novo. Sem medo, sem lembrar que pode tomar um choque. É assim mesmo.
Derrubaram-me, eu caí e fiquei por um tempo ali, sentindo o sol bater nos novos cortes que eu ganhei ao rolar pelo chão morro abaixo.
Doeu, doeu pra porra. Senti o sereno que veio depois batendo na cara e resolvi me levantar, enxugando as lágrimas na camiseta pra ninguém ver.
Cobrindo meus novos cortes com uma jaqueta preta velha, pra ninguém tentar passar metiolate. Eu não preciso de metiolate. Metiolate é só um jeito de fazer a ferida arder.
É só um jeito de arder de um jeito doce, com cara de carinho de mãe. Não sei se as minhas feridas precisam ser limpas por terceiros, cobertas com metiolate.
Já aprendi a limpar as minhas feridas sozinha. Alcanço a caixa de metiolate sozinha, se eu quiser. Foram vários machucados, uma hora a gente aprende.
Eu tapo com bandaid e tento fingir que elas não existem. Mas não adianta, elas ardem mesmo assim. Mesmo com o Metiolate, mesmo com o Bandaid.
Uma hora essa ferida fecha. Enquanto isso, ao tomar banho, choro debaixo do chuveiro porque a água quente também faz arder.
E tudo faz arder, acredite em mim. A saudade faz arder, a falta faz arder, o vácuo faz arder.
Meus machucados só ardem pra eu tomar mais cuidado da próxima vez. Pra cada vez que eu subir um morro, eu lembrar que eu posso cair.
É aquela sensação, que dá o medo de se machucar de novo. Meus machucados são ainda cortes e não cicatrizes com casquinhas para eu arrancar e jogar longe.
Por isso ele arde, dói e dá medo.
Quando criança minha mãe jogava mercúrio em todos os meus machucados. Ouvi dizer que dá câncer. Sei lá. Paramos com o mercúrio por aqui.
Mágoa também dá câncer. Por isso, tento me livrar das mágoas também, no mesmo saco de lixo que jogo os tubinhos de mercúrio.
Mercúrio não arde, é o que ela dizia.
Só porque não arde, não quer dizer que cura, então tudo bem se arder, uma hora sara, quando casar sara, é o que dizem, pois vai ver que é isso mesmo.
Quando eu casar, sara.

Júnior

Você é só uma criança.
Te levei pra passear e voltei suja de leite. Eu disse pra tu não brincar com a mamadeira assim, filho!
Eu te disse e tu não escutou.
Agora o que eu faço com você?
Como saio daqui assim?
Sabe, as pessoas olham, as pessoas questionam.
Mas eu sou tua mãe, não posso apontar o dedo pra tua cara e falar: Foi você! A culpa é toda sua, seu moleque mal criado.
Pois é né? Por que eu faria isso? Foi eu mesma quem te criou, filho. Se tu ta mal criado, eu que errei na condução.
Há algum tempo eu diria que foi falta de tapa na bunda, nem foi!
Fiquei sabendo que você anda aprontando todas na escola. Meu deus, eu criei um monstro! Olha filho...Isso não é legal!
Lembra do que a gente conversou? Lembra do nosso combinado? Eu acho que eu fui muito clara com relação ao dia do brinquedo:
“As algemas são para você brincar com os seus amiguinhos e amiguinhas apenas em casa". Qual parte do apenas em casa você não entendeu?
Agora terei que ir lá na escola, pedir as algemas de volta pra coordenadora.
Puta que pariu, filho. Não dá uma dessa com a mãe, né! A mãe te ama, poxa!
Você quer que pensem o que da tua mãe?
E esses não são os seus quadrinhos! Estes são os quadrinhos meus e do seu pai! Como você os achou?
Ai, filho.Você ta numa idade tão difícil viu! Filho, pelo amor de deus...A CEGONHA NÂO EXISTE!
Seu pai e eu fizemos você, sacou? Ou tu acha que nasceu bonito assim por acaso? É uma questão de encaixe perfeito de dois corpos nus, um dia você vai entender!
Sim, filho, corpos celestes. É isso aí. E não vem com essa de não pediu pra nascer. Não queria nascer? Então como você ganhou na corrida até o óvulo?
Ah, ta sem argumentos? ahhhh, vixe, vixe, vixe, a mamãe ganhou de novo. To falando filho, tua mãe tem a malandragem de Aquiles. Olha, sobre a malandragem de Aquiles, é melhor você perguntar pro teu pai quando ele chegar.
Alias, vou falar pra ele buscar as suas algemas também. Ele é muito mais sociável do que eu, afinal de contas.
Teu pai já vem. Ele desceu pra comprar cerveja. Vamos comemorar a música nova que tu aprendeu a tocar.
E ó...Vamos combinar uma coisa: Tu só vai mostrar esse boletim pro teu pai amanhã, ta bom? E antes disso, tu dá pra ele aquele desenho bacana do dragão verde com um palhaço montado em cima.
Você sabe como o seu pai é chatinho com essas coisas de nota e boletim. Ele vai falar um daqueles "tua mãe resolve" e aí eu vou fazer o que? Pegar de volta seu telescópio só porque você zerou em matemática?
Essas coisas acontecem, meu filho. Essas coisas acontecem mesmo, mas nunca haverá um motivo para que eu desista de você.